Cassio Politi: O Think Tech está no ar. Meu nome é Cassio Politi e, junto com a Algar Tech, vamos embarcar hoje nessa jornada de repensar possibilidades. No episódio de hoje, eu vou fazer uma imersão aqui em transformação digital, mas de um jeito prático. Como de praxe, eu abro o programa cumprimentando a Sara, a especialista virtual em negócios da Algar Tech. Sara, transformação digital é um tema familiar para você, que vive no mundo digital e está sempre encabeçando iniciativas de transformação dentro da própria Algar Tech.
Sara: Olá, Cassio. É verdade, a transformação digital está presente no mercado como um todo. A revista MIT Tech Review fez um levantamento em junho de 2021. Resultado: sete em cada dez empresas pretendem reverter parte do seu faturamento para transformação digital até 2022. Algumas vão destinar pelo menos 10% do faturamento delas para essa finalidade, e outras vão destinar até 50% do faturamento para transformação digital.
Cassio Politi: Interessante, Sara. Eu dei uma lida nesse relatório que você buscou, levantou e trouxe para o programa, o relatório do MIT. Só uma em cada dez empresas não pretende investir em transformação digital, complementando a sua informação. Por isso o tema de hoje é tão importante. Para o bate-papo de hoje no podcast, eu tenho a satisfação de receber o Ney Santos, que é CTO e CIO da Suzano. Acredito que a Suzano seja uma empresa que dispense apresentações. Ney exerce essa dupla função, muito ligada à tecnologia. Ney, antes de tudo, é um grande prazer recebê-lo aqui. Obrigado por aceitar o convite para este bate-papo.
Ney Santos: Prazer, Cassio. Estou muito feliz pelo convite.
Cassio Politi: A gente é que está feliz de tê-lo, Ney. Eu queria falar sobre transformação digital, mas não daquele jeito a que a gente está acostumado a falar quando a gente associa diretamente a novas tecnologias. Não que não tenha relação; é claro que tem. Eu fiz até um curso de transformação digital na Universidade da Virgínia. Tecnologia do começo ao fim. Você fala de manufatura aditiva, internet das coisas, cloud, que é o óbvio quando você pensa em transformação digital. Mas, de um jeito prático, nas empresas, você, que está muito ligado não só à Suzano, mas a outras iniciativas também, transformação tem a ver só com tecnologia ou tem a ver com a operação em si? Será que a gente não está ignorando uma parte do problema, a operação que as empresas precisam estruturar para abarcar a transformação dentro do seu negócio?
Ney Santos: Eu acho muito bacana sua pergunta. Claro, quando a gente fala transformação digital, como carrega a palavra digital, a gente automaticamente pensa em tecnologia. Se você tão simples quanto transformar por tecnologia, qualquer empresa grande comprava, o cara tem dinheiro. O desafio seria ter dinheiro, porque você compraria a tecnologia e teria feito sua transformação digital. E não é isso que a gente está vendo, a gente está vendo que o tema da transformação digital é um desafio gigantesco para todas as empresas. Se não é uma questão de comprar a tecnologia que está disponível, onde está o desafio? Eu estou de férias. Eu vou contar para você um exemplo de transformação digital. Na semana passada eu estava em um restaurante com minha filha. Eu estava do lado externo, e me ligaram da Suzano. Final de ano, tem um monte de contrato para assinar, fechamento com fornecedores. Um funcionário meu me ligou: “você precisa assinar um contrato agora, muito rápido, a gente mandou para você”. Eu peguei o meu celular, acessei o contrato, liberei o contrato em um minuto. No passado isso era um inferno. Era papel, contrato em papel, o jurídico, cartório, o jurídico não sabia com quem estava o contrato, as secretárias ficavam mandando o contrato para um, dois, três, para colher assinatura, colocavam post-it onde cada um tinha que assinar. Isso aconteceu em tempo de pandemia, essa digitalização de assinaturas de contrato, e passou a ser uma coisa simplesmente instantânea. O cara me ligou, eu liguei de volta: “está assinado”. Eu não estou brincando, foi em um minuto. Isso é transformação digital, muda completamente a experiência. É uma tecnologia que já estava disponível, assinatura digital. Foi acelerada em tempo de pandemia na minha empresa e acredito que em centenas, milhares de empresas, e fez uma grande transformação. Por que isso não foi feito antes? O que é transformação digital? É a mudança da forma de pensar. Você viu um problema, as pessoas não poderem se ver, as pessoas não poderem se encontrar. Isso fez com que as pessoas tivessem pensar de um jeito diferente e usar uma tecnologia que já existia, então a transformação digital, na essência, é mudar o jeito de pensar, é pensar que as coisas podem ser feitas de um jeito diferente, que as coisas podem ser feitas de um jeito mais rápido, que as coisas podem ser feitas de um jeito mais simples. Agora é um desafio enorme em empresas estabelecidas onde as coisas são feitas há muito tempo de determinada forma. Ou surge um problema como a pandemia, que vai lá e desafia todas as verdades, ou é um grande desafio para as empresas ir se desafiando para ir mudando o jeito com ela opera, o jeito como ela trabalha. O desafio não é a tecnologia, o desafio é o jeito de pensar. Eu vou lhe dar um outro exemplo só para a gente mudar o capítulo, também agora semana passada. Eu recebi um reembolso de plano de saúde da minha própria empresa. Eu recebi um reembolso do plano de saúde, e ele foi depositado no banco que é do mesmo plano de saúde. Eu não vou falar o banco, foi depositado lá no banco, só que não foi depositado na minha conta, foi depositado no banco: “eu quero passar para minha conta no banco”. Eu entrei no aplicativo, não tinha essa opção. Eu liguei para a gerente da conta, que falou: “você precisa ir à agência” “mas eu quero pegar o dinheiro do plano de saúde, que é do mesmo banco, e colocar na minha conta do banco” “mas não dá, você tem que ir à agência” “está bom, eu vou à agência”.
Cassio Politi: A gente já vê isso como uma operação pré-histórica.
Ney Santos: Eu dei um exemplo onde a digitalização ocorreu e um caso típico onde a digitalização precisa ocorrer. Porque não tem a menor lógica, eu vou à agência: “você pega o dinheiro que está aí dentro e passa para um outro lugar aí dentro. Você tira do lugar do reembolso e passa para um lugar chamado conta, mas aí dentro, eu não quero nem ver”. Só que eu vou ter que ir até lá para fazer isso. Você vê que tipicamente alguém ainda não se incomodou com esse problema para transformá-lo, ou seja, para fazer uma transformação digital nesse problema. É claramente as pessoas pensarem, porque a tecnologia para fazer isso existe.
Cassio Politi: Falar de cultura é meio óbvio. Eu gosto de conversar com você porque você vai nessa coisa da operação. Não que cultura não seja um problema, mas eu acho que discutir a cultura é uma discussão mais teórica. Na prática, a gente vai vendo isso acontecer. Olhando por dentro, como é quando você vê esse problema estando dentro da empresa? Onde você acerta isso em uma empresa? É na operação que começa em que ponto?
Ney Santos: São muitos elementos. Toda empresa tem sua cultura, que é alimentada. É como nossa casa. Nossa casa tem uma cultura. Por exemplo, tem a hora do almoço, se você escuta música alta ou não. A empresa tem a cultura dela, que é alimentada pelos rituais, os rituais são as reuniões, o jeito de fazer orçamento, o jeito de cobrar resultado, o jeito de gerir as equipes. Toda empresa tem o seu jeitão, que é sua cultura. Essa cultura vai facilitar e vai alimentar a possibilidade de você provocar transformações ou vai ser muito rígida. Eu sempre falei que filho de pai bravo é mentiroso. Se você tem uma cultura muito hierárquica em que a liderança é poderosa, manda, decide, ou seja, escuta pouco, trabalha pouco com a base, o topo da pirâmide manda… é aquela história antiga, tem quem manda e quem obedece. Se você tem uma cultura muito rígida assim, é uma cultura que demora a inovar, que dificulta a transformação digital. O que é a transformação digital? A transformação digital em uma empresa grande, seja Suzano ou qualquer empresa muito grande, uma empresa que já existe há muitos anos… ela tem processos que foram criados há muitos anos. Todas. Não é a Suzano, são todas. Provavelmente vai ter processos mais modernos, processos mais antigos, ferramentas mais modernas, ferramentas mais antigas. Quais empresas vão transformar isso mais rápido? Aquelas em que as pessoas tiverem mais abertura para mudar, aquelas em que as pessoas tiverem mais abertura para dizer: “deve ter um jeito melhor de fazer”. As pessoas são aquelas que estão com a mão na massa, aquelas que estão incomodadas com o problema. Quanto mais distante você está do problema, por exemplo, um diretor, um vice-presidente… eu, que estou lá em cima, nem sei, o cara já traz um relatório pronto para mim, um sistema fez aquilo, de repente tem 30 pessoas preparando um monte de planilha para se chegar a um gráfico bonito. Eu não vou incomodar nunca, está chegando bonito para mim. Tem gente virando a noite para fazer aquilo parecer bonito em uma reunião. Deve ter um monte de gente incomodada, querendo automatizar, devem estar pensando: “não é possível que não tenha um jeito melhor de fazer”. Essas pessoas deveriam ter autonomia de fazer de um jeito melhor. Quanto mais autonomia, quanto mais ferramenta, quanto mais descentralização, quanto mais equipes multifuncionais uma empresa conseguir implantar, mais fácil, mais fluido será o processo de transformação digital.
Cassio Politi: Eu fico pensando que hoje que algumas empresas compram a tecnologia… não que isso signifique transformação digital, como você falou. Mas você vê as empresas, as chamadas incumbentes, agirem muito dessa forma. Elas podem desenvolver iniciativas dentro de casa ou podem comprar startups. Pela sua experiência, você acompanha muito esse processo de perto, estando no board de empresas, tem um conflito ali operacional, talvez até cultural? Por exemplo, você vai comprar uma empresa. Se é um M&A normal, o que vai acontecer? Você vai olhar o faturamento aquela empresa, a rentabilidade daquela empresa nos últimos 12 anos. Outro dia a gente estava conversando e você observou isso, conversando offline. Uma startup vai ser sempre vetada nesse critério. Para estar saudável, muitas vezes ela tem que estar reinvestindo tudo, tem que estar no vermelho. Tem esse conflito também desse ponto de vista operacional, desse ponto de vista de choque até de cultura antiga com cultura nova?
Ney Santos: Quando a gente olha o processo, pode ser de M&A ou de trabalhar com startups, ou seja, contratar startups, eu acho que o problema acontece já no ato de suprimentos, até antes de um M&A. Quando você vai contratar uma startup ou contratar um fornecedor tradicional de tecnologia, são contratações muito diferentes. O processo de avaliar um fornecedor tradicional e avaliar… você coloca uma cláusula com um fornecedor de lucro cessante… se eu colocar em uma startup, você vai colocar a turma da startup endividada para o resto da vida. É impossível ser aprovado um contrato em que você coloca uma cláusula, seja qual for o tamanho desse lucro cessante, porque a startup não tem condição de pagar nem meia hora de lucro cessante. Para você trabalhar com startups, você tem que adequar o seu modelo de contratação, o seu modelo de avaliação. Você falou muito bem desse ponto. Se você for olhar o capital líquido de uma startup, ela vai estar no vermelho. Quando você começa a pegar capital e investimento ainda no seed, é endividamento. Ela vai estar endividada, e isso não quer dizer que ela é ruim. Se você quiser procurar lucro, ela está buscando crescimento no início, não está buscando lucro. São outros KPIs, outros OKRs que avaliam se uma startup é boa. É diferente de olhar uma empresa gigante onde você está procurando lucro, patrimônio. De fato, até para contratar como fornecedor e avaliar a saúde, são outros OKRs, outros KPIs que precisam ser avaliados para você decidir a contratação de uma startup.
Cassio Politi: Qual é o risco nesse caso? Você está falando de ter que aprender a lidar com essa startup. O risco é prejudicar o próprio ecossistema, ter duas empresas diferentes em uma? Isso é o grande risco?
Ney Santos: Você pode fazer investimentos ruins, pode matar o empreendedor, matar o investimento. Se você tem um empreendedor, alguém que tem um espírito empreendedor, uma incumbente, faz um investimento que trava esse empreendedor de crescer, você perdeu. Ele é um empreendedor, olhe a palavra, empreendedor. Talvez naquele momento ele tenha visto uma oportunidade financeira e achou que sim, só que no final ele perde a energia, a motivação, perde aquilo que move um empreendedor. Então você tem que ter a capacidade de ler a equipe, a pessoa, o time, quem está por trás. Não é uma leitura só de produto. Quando você compra uma startup, um dos elementos principais que você está comprando são os talentos. Precisa ser muito claro se você está investindo em uma empresa que tem potencial para acelerar um segmento. Aí você deveria deixá-la solta. Claro, você pode ser o controlador dela, pode ser o cara que vai mais ganhar se ela se tornar um unicórnio. Mas você vai deixá-la acelerar. Ou isso é nicho puro, não acelera, não é algo que escala no mercado, escala dentro da minha organização, e esse cara tem muito mais perfil de executivo do que de empreendedor. Tem que ter esse olhar sobre as pessoas com quem você está fazendo negócio. Tem que ser muito bem combinado isso entre as partes.
Cassio Politi: Você está no conselho de três empresas. Me dá uma sensação boa de maturidade do mercado quando a gente fala de tecnologia. Não muito tempo atrás, talvez dez anos ou até menos, você via muito as startups brincando de tecnologia. Inventava uma solução, ia ver se alguém tinha o problema no mercado. Hoje me parece muito diferente isso. Parece que a gente atingiu como mercado um estágio de maturidade no Brasil. O empreendedor, as pessoas que lidam bem com tecnologia já usam a tecnologia como meio para resolver um problema de negócios ou para aproveitar uma oportunidade de negócios. Isso é uma percepção que eu tenho de fora. Você está em três conselhos, você está na Suzano. Minha percepção está correta? Ou ainda tem que o que evoluir?
Ney Santos: Tem espaço para evoluir, mas o ecossistema evoluiu muito, muito, muito. A turma está muito focada em ter clareza de qual problema o produto… se fala em produto claramente, não se fala mais em solução, ou seja, qual problema o meu produto resolve. Essa coisa de ter a clareza de qual é o problema que eu quero resolver, eu acho que está muito introjetado no ecossistema de startups. Todo mundo que está começando já começa querendo definir que problema vai resolver. Depois é evidente que as startups têm um desafio enorme de desenvolver um produto, achar um mercado, nichar, como atingir o mercado, tem uma série de desafios para uma startup. Naturalmente, o ponto de partida que eu tenho visto é — qual problema eu quero resolver? Isso é um grande avanço.
Cassio Politi: Você falou muito dos problemas das incumbentes, das empresas que compram, das empresas que são compradas. Orçamento é um desses problemas? Ele limita um pouco. Como você fala em inovação quando tem um orçamento que diz: “inove para caramba aí, mas você tem X para gastar”. Não é um pouco contraditório?
Ney Santos: Orçamento é um desafio histórico, é um dos desafios do modelo de gestão existente. McKinsey, quando criou isso na década de 20 um modelo orçamentário… já evoluiu bastante, orçamento base zero. A gente aqui no Brasil cria outros orçamentos, mas deixemos para lá, não vamos falar de política, tem vários modelos de orçamento. Independentemente de discutir o conceito, a gente tem uma coisa que é o fato. As empresas definem um orçamento em um ano, no final do ano, para desenhar o ano inteiro seguinte. A gente vive em um mundo com uma volatilidade gigantesca, seja volatilidade na linha do top line, seja volatilidade na linha dos custos, com variação de câmbio, variação de despesas. A gente sabe que a peça orçamentária definitivamente não reflete, tem uma probabilidade de erro gigantesca. Você faz um orçamento de 12 meses… falando do cenário do Brasil, quem conseguir acertar o câmbio está quase que acertando a Mega-Sena da Virada. Naturalmente, os orçamentos têm uma margem de erro enorme, então são muito mais uma bússola do que de fato um GPS, só que você fica amarrado a essa bússola. O orçamento, se parte de uma premissa, de uma rigidez de que tem que ser seguido à risca, os gastos, independentemente do que está acontecendo no mundo… se suas receitas aumentam, então você tem que seguir a linha de despesas. Se o mercado está reagindo de outro jeito, você está preso a aquele orçamento. Você acabou de definir que não vai permitir — não estou falando de área de tecnologia — que suas áreas inovem.
Cassio Politi: Eu quero lhe agradecer muito pelo papo. É muito bom conversar com você porque você vive isso no dia a dia. É gostoso ter essa conversa porque você traz exemplos reais, exemplos práticos do seu dia a dia, saindo um pouco da teoria. Não que teoria seja um problema, não é, mas é sempre gostoso quando a gente, além da teoria, consegue aliar o aspecto prático, como você fez hoje. As portas estão abertas aqui. Volte sempre que quiser. Não precisa nem bater à porta, é só entrar e bater novos papos comigo. Obrigado, Ney.
Ney Santos: Cassio, foi um prazer. Muito obrigado. Muito grato.
Cassio Politi: Legal. Vamos chegando ao final do Think Tech de hoje, em um papo muito prático com o Ney. Ele está no conselho de três empresas, então vê tudo isso acontecer no dia a dia dele. Aliás, eu gostei muito da parte em que ele falou de cultura, comparando a cultura da empresa à cultura de uma casa ou de uma família. Sara, cultura é um tema complexo, quando a gente fala de empresas, não é?
Sara: Sim, Cassio. Existem muitos artigos que falam sobre cultura empresarial. A Forbes, por exemplo, listou recentemente três sinais de que uma cultura está doente dentro da empresa. Um desses sinais é aquela máxima: “é assim que sempre foi feito, então não vamos mudar”. Segundo a revista, esse é um dos grandes inimigos da inovação. Vai bem na linha do que você e o Ney conversaram.
Cassio Politi: Legal, Sara, obrigado. Aliás, a gente deixou o link para esse artigo que você citou da Forbes na descrição do podcast de hoje. Bom, a gente vai ficando por aqui. Eu o espero na próxima edição do Think Tech. Até a próxima.